sexta-feira, 27 de julho de 2012

A unidade

De repente o pensamento que todo ser humano já experimentou: Por que sou eu? E depois, sem que eu me lembre dos meus erros ou infelicidades, fico intrigada por estar presa nesse corpo e nessa mente sem poder experimentar ser outras pessoas, ter outras vidas e ter consciência disso, mas é como se caso eu, no meu presente corpo e mente, não existisse, também não existisse toda a história, toda a matéria. Eu me pergunto se deus pode fazer isso, e logo penso se deus seriamos todos nós de uma vez só e a essência da sensação de protagonismo que cada pessoa vivencia fosse um pedaço, um átomo do corpo desse deus, o Universo. Agora, em vez do pensamento individualista que me regia no começo do parágrafo e me isolava das pessoas pensando "eu", uma extrema sensação de Unidade toma conta de mim... e permito.




"- Oh Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do telhado?

- Não sei... e aquela, Zé Fernandes, além, por cima do pinheiral?

- Não sei.

Não sabíamos. Eu por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre de Coimbra, minha Mãe espiritual. Ele, porque na sua Biblioteca possuía trezentos e oito tratados sobre Astronomia, e o Saber, assim acumulado, forma um monte que nunca se transpõe nem se desbasta. Mas que nos importava que aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava a eles que um de nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão pequeninos, somos a obra da mesma Vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de Noronha e Sande, constituímos modos diversos dum Ser único, e as nossas diversidades esparsas somam na mesma compacta Unidade. Moléculas do mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim... Do astro ao homem, do homem à flor do trevo, da flor do trevo ao mar sonoro. [...]

E depois (como eu notei) devíamos considerar que, sobre cada um desses grãos de pó luminoso, existia uma criação, que incessantemente nasce, perece, renasce. Nesse instante, outros Jacintos, outros Zés Fernandes, sentados às janelas de outras Tormes contemplam o céu noturno, e nele um pequenininho ponto de luz, que é a nossa possante Terra por nós tanto sublimada. Não terão todos esta nossa forma, bem frágil, bem desconfortável, e (a não ser no Apolo do Vaticano, na Vênus de Milo e talvez na Princesa de Carman) singularmente feia e burlesca. Mas, horrendos ou de inefável beleza; colossais e duma carne mais dura que o granito, ou leves como gases e ondulando na luz, todos eles são seres pensantes e têm consciência da Vida - porque decerto cada Mundo possui o seu Descartes, ou já o nosso Descartes os percorreu a todos com o seu Método, a sua escura capa, a sua agudeza elegante, formulando a única certeza talvez certa, o grande Penso, logo existo. Portanto todos nós, Habitantes dos Mundos, às janelas dos nossos casarões, além dos Saturnos, ou aqui na nossa Terrícula, constantemente perfazemos um ato sacrossanto que nos penetra e nos funde - que é sentirmos no Pensamento o núcleo comum das nossas modalidades, e portanto realizarmos um momento, dentro da Consciência, a Unidade do Universo!" (Eça de Queirós, A cidade e as serras)